Na Terra Santa do Piauí
Do campanário dobra o sino em sinal de penitência, ecoando o litúrgico tempo quaresmal. Baila solitário no arco de pedra, tangendo para bem longe os males e trazendo para bem perto os devotos do Bom Jesus dos Passos. Na noite mística da Fugida, a imagem do Senhor dos Passos, camuflada pelo docel roxo é levada ao Rosário, ali, apresentam-na na mais sublime das contemplações. Diante dos olhos dos cristãos, a feição divinal do filho de Deus, uma vez humanizado, se faz verbo no cântico do Miserere, que em coro suplicam: “tende piedade Senhor/ e sê clemente tua bondade/ apague o meu pecado/ e lava-me toda a minha culpa/ purifica-me de minha iniquidade.” O canto dolente é um reconhecimento das inenarráveis fraquezas humanas diante a Cristo.
No romper do dia seguinte, Oeiras amanhece mais roxa, pois o roxo é a insígnia do amor piedoso, a cor, se faz presente pelas ruas tão quanto nas roupas dos devotos, que por sua vez explicitam a fé sertaneja. No dia mais oeirense do ano os sinos anunciam os ritos sacros, uma convocação a viver um momento de contrição. Desses rituais um dos mais eloquentes é o Ofício do Passos, oração cantada que rememora a Paixão Santa de Cristo que se faz em meio a um misto de orações e ladainha... E assim intercedem a Cristo vergado pelo peso da cruz: “Dignai-vos, dai-me os socorros de vossa divina graça, aos vivos e defuntos perdão e descanso, a vossa Igreja paz e concórdia, a nós pecadores glória e vida eterna”... Nesse momento sacro a poesia dos versos toca profundamente nos coroações dos romeiros dos Passos.
Na tarde desse mesmo dia, os caminheiros aglomeram-se no entorno da Igreja do Rosário, quando desponta da porta principal a imagem do Senhor dos Passos carregado por seus devotos. Logo ali, no primeiro passo, uma moçoila ergue os braços e expõem à face de Cristo no sudário, eis o verdadeiro ícone (vera icona), que diante a referência linguística passou a ser chamada de Verônica, aquela que enxugou a face de Jesus no caminho do Gólgota. Mas por essas bandas do trópico, Verônica é popularmente chamada de Maria Beú em detrimento do cântico em que entoa: “Ò Vos ommes,que transitis perviam, atendite et videte se est dolor sicut dolor, dolor meus, meus, meus.” Assim, do latim erudito, fez-se a popular denominação.
A procissão desce da Doce Colina rumo ao antigo Brejo do Mocha, o Guião (estandarte) logo a frente demarca a sacralidade da festa. Como bem disse Fonseca Neto: “Oeiras subir ao Rosário, ainda que roxa, é um povo a afirmar sua história e descer do Rosário, idem, é um povo em turbilhão estandartizado de esperanças. Maria Beú: passais caminheiros do futuro.” E assim, seguem rumos aos outros passos da celebração. Em cada parada, benção, cânticos e flor de passo, que germina nas mãos heráldicas dos filhos da terra.
Em cada passo, a cristandade projeta seu olhar místico sob os símbolos do evento litúrgico. Desta feita, fica a menina da zona rural a fitar a Maria Beú, sonho de ser ela quem sabe um dia, tão quanto é contemplativo o olhar de muitas “Marias” que também sonham, em um dia rever os seus filhos que vítimas do êxodo rural migraram para os grandes centros urbanos e fica ainda o olhar dos citadinos que exercitam a mais profunda oeirensidade revivendo uma de suas mais belas tradições.
Caminhar pelos passos do Bom Jesus é fazer desse momento uma das maiores demonstrações de fé do povo sertanejo, tradição que se tornou ao longo dos anos identidade da cidade. Assim, caminhar é preciso, visitar Oeiras é necessário...
Junior Vianna
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